Invariavelmente, a abordagem sobre a fiscalização dos contratos firmados com a Administração Pública é parcialmente limitada ao Direito Administrativo e sem qualquer intensa incursão quanto às decorrências que a precária fiscalização contratual ocasiona em outros ramos do Direito.
Sem mais nem menos, não se discute o poder-dever da Administração Pública em impor as devidas penalidades quando verificadas condutas por parte do contratado, as quais possam atrair alguma sanção prevista no contrato. Logo, o foco do presente artigo distrai-se da profundidade conferida ao tema pelo Direito Administrativo Sancionador, não por ser menos importante ou sem maior interesse, mas, puramente, porque o desígnio buscado no texto é outro, decorrente do Tema 1.118, apreciado, com repercussão geral, no Recurso Extraordinário 1.298.647.
No referido RE, a tese de repercussão geral firmada foi a seguinte:
“Não há responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, remanescendo imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ele invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público.
Haverá comportamento negligente quando a Administração Pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo.
Constitui responsabilidade da Administração Pública garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato, nos termos do artigo 5º-A, § 3º, da Lei 6.019/1974.
Nos contratos de terceirização, a Administração Pública deverá: (i) exigir da contratada a comprovação de capital social integralizado compatível com o número de empregados, na forma do art. 4º-B da Lei nº 6.019/1974; e (ii) adotar medidas para assegurar o cumprimento das obrigações trabalhistas pela contratada, na forma do art. 121, § 3º, da Lei nº 14.133/2021, tais como condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior.”
Levando em consideração que o resultado do julgamento foi proclamado ontem (13/02/2025), necessário abreviar o contexto jurisprudencial que lhe é precedente. Em 2010, quando da apreciação da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 16, o STF fixou entendimento no sentido de que a responsabilidade contratual da Administração Pública é subsidiária, declarando a constitucionalidade do então vigente artigo 71, § 1º, da Lei nº 8.666/1993:
“EMENTA: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.”
Por decorrência do julgamento alcançado pelo STF na ADC 16, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) editou o conteúdo da Súmula nº 331, acrescendo, além de outras alterações, o inciso V:
“V- Os entes integrantes da administração pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666/93, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.”
Tudo indicava, com o julgamento da ADC 16 e a alteração na redação da Súmula 331, que a responsabilidade da Administração Pública somente teria assento quando houvesse evidente culpa. Sucede que o TST tendia a não proceder à diferença quanto ao dever de provar a culpa, sobretudo durante a fiscalização do contrato. Na prática, tratava-se de prova diabólica, cujo ônus recaía sobre a Administração, proporcionando uma avalanche de demandas trabalhistas.
De tal modo, a matéria quase sempre era definida nas instâncias ordinárias, uma vez que a Súmula 126, do TST, veda a rediscussão de fatos e provas no âmbito do recurso especial trabalhista — o recurso de revista. Porém, com a decisão do STF no RE 1.298.647, há uma singularidade que precariza o entendimento do TST, na medida em que a responsabilidade não pode decorrer da premissa da inversão do ônus da prova.
Se, outrora, a propositura de uma reclamação trabalhista contra um contratado inadimplente atraía, para o âmbito da Justiça do Trabalho, a Administração Pública (seja ela direta ou indireta), ampliando o polo subjetivo da lide, com o novo entendimento do STF haverá um maior rigor na apreciação da matéria, fato este que, por si só, não elide o dever da Administração de fiscalizar devidamente, gerindo o contrato de forma a não permitir responsabilização futura. É justamente neste ponto que reside uma estreita armadilha.
Isso porque o comportamento negligente da Administração, se provado desde a propositura da reclamação trabalhista, impõe responsabilização. Portanto, sem interpretações alvissareiras, o STF não eliminou a possibilidade de a Administração Pública responder, alterando, apenas, a distribuição sobre o ônus da prova. Para a Corte Suprema, sendo provada a negligência da Administração Pública, segundo critérios estabelecidos na tese fixada (nomeadamente inércia decorrente de notificação formal dos órgãos de fiscalização trabalhista), poderá prevalecer a responsabilização.
Como nem sempre a atenção da Administração contratante está inteiramente voltada para o inadimplemento, pelo contratado, das verbas trabalhistas — por vezes, a fiscalização do contrato incide muito mais sobre outros aspectos, como a qualidade do serviço prestado —, havendo um mínimo indício de inadimplemento destas verbas, o olhar do fiscal e gestor do contrato tem de ser redobrado, evitando, sempre que possível, potencial responsabilização da Administração Pública na Justiça do Trabalho.
O julgamento do STF é, sem dúvidas, um tranquilizante para o Poder Público. Todavia, definitivamente, o cerne de toda a questão continua sendo a fiscalização do contrato.
Aos gestores e fiscais, um recado: o ônus da prova é traiçoeiro!
___________________________________
Artigo de: Guilherme Carvalho, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração e sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).
Fonte: conjur.com.br
Comments