A Instrução Normativa SEGES/MGI n.º 382/2025 e o desempate em licitações pela equidade de gênero
- Secretaria Executiva
- 25 de set.
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A Instrução Normativa SEGES/MGI n.º 382, de 17 de setembro de 2025, inaugura um marco importante: transformar a equidade de gênero em critério prático e concreto de desempate em licitações públicas — o que antes era uma diretriz genérica, ganha agora procedimentos claros, documentos exigíveis e impacto direto na classificação das propostas.
Trata-se de medida que dialoga com o art. 60, III, da Lei n.º 14.133/2021 e com o Decreto Federal n.º 11.430/2023, reforçando a agenda de inclusão e diversidade como fator competitivo. Mais do que simbolismo, estamos diante de uma política pública operacionalizada no processo licitatório.
Fundamento legal
Lei n.º 14.133/2021, art. 60, III: prevê vantagem de desempate para empresas que adotem ações de equidade de gênero no ambiente de trabalho;
Decreto Federal n.º 11.430/2023, art. 5º: detalha como essa vantagem deve ser aplicada;
IN SEGES/MGI n.º 382/2025: regulamenta a comprovação, aferição e operacionalização prática.
O que são “ações de equidade”?
A norma considera como ações de equidade:
igualdade de oportunidades na inserção, participação e ascensão profissional;
paridade salarial entre mulheres e homens;
prevenção ao assédio moral e sexual;
programas de equidade de gênero e raça;
saúde e segurança no trabalho considerando as diferenças de gênero;
mulheres em cargos de liderança.
Ou seja, não basta discurso ou boas intenções. É necessário comprovar práticas efetivas, com respaldo documental.
Estrutura de comprovação: ouro, prata e bronze
A IN cria um tripé de níveis de comprovação, que hierarquiza a robustez das práticas apresentadas:
Nível Ouro: selos já reconhecidos nacional ou internacionalmente, como o Pró-Equidade de Gênero e Raça (MMulheres) ou o Selo de Igualdade de Gênero do PNUD;
Nível Prata: compromissos formais e adesão a programas como Empresa Amiga da Mulher (Lei n.º 14.682/2023), Empresa Cidadã (Lei n.º 11.770/2008), relatórios à ONU Mulheres, entre outros; e,
Nível Bronze: documentos mais básicos, como assinatura dos Princípios de Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), relatórios de transparência salarial (Lei n.º 14.611/2023) ou declarações acompanhadas de evidências internas.
Essa divisão é relevante porque o sistema de compras eletrônicas hierarquiza automaticamente: ouro prevalece sobre prata, que prevalece sobre bronze.
Procedimento prático para o licitante
O licitante deverá:
declarar no sistema (no momento do cadastramento da proposta) que possui ações de equidade;
apontar o nível (ouro, prata ou bronze);
anexar documentos comprobatórios conforme previsto nos arts. 5º a 7º da IN, quando solicitado;
estar ciente de que o agente de contratação ou comissão irá verificar a autenticidade — inclusive por diligências junto a órgãos e programas responsáveis.
Se houver inconsistências, o benefício é perdido e a vantagem passa ao licitante subsequente.
Qual o papel da Administração?
Cabe ao agente de contratação/pregoeiro ou à comissão:
verificar a autenticidade dos documentos;
conferir as evidências apresentadas;
consultar fontes externas (páginas eletrônicas, organismos certificadores, ONU, etc.);
aplicar a ordem de classificação, priorizando ações de nível superior.
Ou seja: não é mera formalidade. Há um dever ativo de checagem, que exige capacitação dos agentes públicos para lidar com documentos nacionais e internacionais de certificação.
Desafios e críticas
A IN SEGES/MGI n.º 382/2025, embora avance de forma significativa no detalhamento do critério de desempate fundado na equidade de gênero, também abre espaço para questionamentos e pontos de atenção que precisam ser enfrentados com realismo técnico. A seguir, destaco os principais desafios.
Um dos maiores desafios decorre da assimetria entre grandes corporações e micro e pequenas empresas (MPEs). Enquanto organizações de maior porte dispõem de recursos financeiros, estrutura organizacional e departamentos de compliance capazes de aderir a programas internacionais (ONU Mulheres, Pacto Global, PNUD), as MPEs podem encontrar barreiras práticas e econômicas para obter certificações ou cumprir formalidades.
Esse cenário pode gerar uma concentração de vantagens competitivas nas grandes empresas, restringindo o alcance social do critério e afastando justamente atores econômicos que compõem a maioria das fornecedoras do Estado. É um paradoxo: o instrumento criado para ampliar a diversidade e a inclusão pode, se mal calibrado, reforçar desigualdades no mercado de contratações públicas.
Nesse sentido, a Administração deve considerar ações de fomento específicas, como simplificação de exigências para MPEs, capacitações voltadas para equidade ou a aceitação de provas alternativas mais acessíveis a esse segmento.

Outro ponto crítico é a burocratização. A IN prevê uma série de documentos comprobatórios — selos, termos de compromisso, relatórios de indicadores, políticas internas, normas corporativas — que devem ser organizados e apresentados em tempo hábil pelo licitante.
Embora a robustez documental seja necessária para garantir segurança jurídica, há o risco de que esse excesso de formalidades desestimule fornecedores menores ou menos estruturados, que não dispõem de corpo técnico para lidar com tais exigências.
Do ponto de vista da Administração, a burocratização também se reflete no aumento da complexidade do julgamento, podendo levar a delongas na fase de habilitação e no desempate, com impacto direto na celeridade do certame.
O equilíbrio, aqui, está em buscar procedimentos padronizados de comprovação, criação de checklists objetivos e uso de plataformas digitais que reduzam a carga manual de análise, tornando o processo mais ágil e transparente.
Talvez o desafio mais sensível seja a capacidade técnica da Administração para verificar, com a profundidade exigida, a autenticidade e a efetividade das ações de equidade declaradas pelas empresas.
O art. 9º da IN atribui ao agente de contratação ou à comissão a responsabilidade de verificar autenticidade dos documentos, consultar sítios eletrônicos, checar relatórios de programas internacionais e, se necessário, diligenciar junto a organismos estrangeiros. Trata-se de uma tarefa que demanda conhecimento especializado, tempo e infraestrutura de apoio.
Sem capacitação adequada, o risco é duplo:
aceitação de documentos sem lastro efetivo, transformando o critério em mera formalidade;
exclusão indevida de empresas por falhas de interpretação ou falta de domínio técnico sobre normas internacionais.
Ambas as situações geram insegurança jurídica, questionamentos administrativos e, em última instância, judicialização dos certames.
É fundamental, portanto, que a SEGES/MGI e os órgãos centrais desenvolvam guias interpretativos, manuais operacionais e capacitações específicas, além de considerar o apoio de áreas especializadas em integridade, diversidade e relações internacionais, de modo a garantir uniformidade na aplicação do critério em todo o território nacional.
Há, ainda, um quarto aspecto implícito: a potencial judicialização. A depender da interpretação dos órgãos de controle, a aplicação ou rejeição das evidências de equidade poderá ser questionada por licitantes em mandados de segurança ou representações junto ao TCU. Isso tende a gerar precedentes importantes, mas também pode atrasar contratações estratégicas.
Assim, a Administração deve atuar com rigor técnico e padronização nacional, para evitar decisões díspares que comprometam a segurança jurídica.
Conclusão
A Instrução Normativa SEGES/MGI n.º 382/2025 consolida um marco na evolução das compras públicas ao inserir, de forma clara e operacional, a equidade de gênero como critério competitivo — o que antes era uma diretriz principiológica transforma-se agora em regra aplicável, com parâmetros objetivos, escalonados e verificáveis.
Mais do que um mecanismo de desempate, o normativo institui uma política pública de indução: estimula empresas a revisarem suas estruturas de gestão de pessoas, remuneração, liderança e integridade, convertendo boas práticas de diversidade em vantagem concreta no mercado fornecedor do Estado.
Para os gestores públicos, a mensagem é inequívoca: a licitação não é apenas um procedimento administrativo, mas um vetor de transformação social e cultural, capaz de alinhar a atividade contratual do Estado com compromissos constitucionais e internacionais de igualdade. Para os fornecedores, a conclusão é estratégica: quem se antecipa e estrutura políticas de equidade não apenas cumpre um papel social relevante, mas amplia suas chances de competitividade e sustentabilidade no longo prazo.
Em síntese, a IN n.º 382/2025 sinaliza que a contratação pública do futuro não se restringe ao menor preço — ela integra qualidade, governança e valores sociais, reafirmando que a Administração Pública é também um agente ativo na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
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Artigo de: Viviane Mafissoni Especialista em Direito Público; Advogada; Estudou sobre Mecanismos de Controle e Combate à Corrupção na Contratação Pública (Universidade de Lisboa, Portugal – 2019); Formada em Alta Liderança pela Fundação Dom Cabral (2019); Membra Consultora da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/DF; Diretora Acadêmica do Instituto Nacional da Contratação Pública – INCP_BR; Analista Jurídica de Projetos e Políticas Públicas do Poder Executivo do Estado do Rio Grande do Sul, com atuação em diversas áreas na Central de Licitações (2010-2021); Ex-Chefe do Serviço de Compras Centralizadas da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH, vinculada ao Ministério da Educação (2021/2023); Atualmente cedida à Advocacia-Geral da União – AGU, como Coordenadora-Geral da Logística; Professora de pós-graduação da Escola Mineira de Direito e do Instituto Goiano de Direito; Avaliadora de Artigos Técnicos do Consad (2024); Autora de artigos; Coautora de diversos livros e palestrante sobre temas que envolvem contratações públicas.







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