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Da viabilidade do equilíbrio atuarial dos regimes próprios de previdência

A legislação brasileira exige que a previdência social pública, ou seja, os Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) e o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) sejam geridos “observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”, conforme disposto nos caputs dos artigos 40 e 201 da Constituição.


ste artigo mostra que a exigência do equilíbrio atuarial do RPPS tem significado a adoção do regime financeiro de capitalização, mesmo que o texto constitucional não seja explícito a esse respeito. Essa operação é extremamente onerosa para o ente federativo instituidor e, em muitos casos, inexequível. Assim, seria oportuno rever essa exigência e substituí-la por outra norma mais viável para assegurar a sustentabilidade a médio e longo prazo desses sistemas previdenciários.


a administração pública brasileira, prevalece o entendimento de que somente há equilíbrio quando as despesas previdenciárias são custeadas pelas receitas provenientes das contribuições de segurados e empregadores, bem como por eventuais fundos financeiros, sem requerer aportes adicionais do ente responsável, previstos nos chamados “planos de amortização” do déficit.


Para a maioria dos leigos, incluindo grande parte dos membros do poder legislativo, por equilíbrio financeiro entende-se a ausência de déficit no curto prazo, enquanto o equilíbrio atuarial significa a ausência de déficit no longo prazo. Embora essa visão não seja incorreta, ela é insuficiente.


Sob uma perspectiva técnica, o equilíbrio atuarial vai além dessa interpretação genérica de sustentabilidade. Ele exige que o sistema previdenciário possua reservas financeiras suficientes para cobrir todas as prestações futuras de seus segurados — tanto dos já aposentados quanto dos ainda em atividade —, considerando as contribuições futuras e os rendimentos dos investimentos do patrimônio acumulado.


Essas reservas precisam ser integralizadas até a data de concessão do benefício. Assim, embora a Constituição não estabeleça de forma explícita qual regime financeiro [1] deve ser adotado nos sistemas de previdência social pública, pode-se deduzir a obrigatoriedade do regime financeiro de capitalização coletiva [2].


De fato, a grande alternativa para o custeio dos RPPS e do RGPS é constituída pelo regime financeiro de repartição simples (também chamado de regime orçamentário) [3], que é desenhado com o objetivo de garantir receitas suficientes para o pagamento das despesas do exercício, ou seja, para o curto prazo, não formando reservas para o pagamento dos exercícios futuros. Esses entendimentos são respaldados pelo Ministério da Previdência e pelos tribunais de contas, que fiscalizam os estados e municípios e que exigem planos de amortização dos déficits atuariais dos RPPS.


A obtenção de equilíbrio atuarial é uma forma de garantir a sustentabilidade da previdência pública no médio e longo prazo, mas não é a única alternativa. A Constituição prevê modalidades de mais fácil implementação, como os fundos de aprovisionamento. Veja-se:


Art. 249 da Constituição Federal. Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e pensões concedidas aos respectivos servidores e seus dependentes, em adição aos recursos dos respectivos tesouros, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão constituir fundos integrados pelos recursos provenientes de contribuições e por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e a administração desses fundos.

Esses fundos asseguram os benefícios previdenciários futuros de maneira menos rígida e onerosa em comparação com a adoção do regime de capitalização coletiva. Isso ocorre porque o artigo 249 da Constituição não estabelece um saldo obrigatório a ser alcançado pelos fundos, deixando essa definição a cargo do ente federativo responsável. Por exemplo, poderia se formar um fundo com o saldo equivalente a 10 anos de pagamentos futuros de aposentados e pensionistas. Esse montante seria significativamente menor do que o necessário para garantir a cobertura integral de todas as prestações futuras dos servidores ativos e inativos.

O artigo 249 foi introduzido pela Emenda Constitucional nº 20/1998 (EC 20), que também passou a exigir o equilíbrio atuarial dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS). Observe-se que o fundo de aprovisionamento faz sentido em um RPPS operado sob o regime orçamentário, mas não no regime de capitalização, que já prevê o pré-financiamento de todos os benefícios futuros.


Nesse contexto, o artigo 249 da Constituição parece permitir que os regimes próprios continuem operando em regime de repartição simples, prática que União vem adotando para o RPPS dos servidores civis e o RGPS. Essa situação gera uma aparente contradição com a obrigatoriedade do regime de capitalização prevista no caput do artigo 40 da Constituição. Trata-se de uma questão pouco clara no texto constitucional, o que abre espaço para que os RPPS subnacionais reavaliem, com mais liberdade, a escolha do regime financeiro.


Atual debate sobre equilíbrio atuarial dos RPPS

Passadas mais de três décadas desde a EC 20, a maioria dos RPPS estaduais e municipais enfrenta déficits financeiros e atuariais elevados e maiores do que em 1998, apesar de várias reformas previdenciárias que dificultaram o acesso aos benefícios, reduziram o valor deles e aumentaram as contribuições dos segurados. Em particular, o déficit atuarial complexivo dos RPPS municipais, é da ordem de R$ 1,1 trilhão, de acordo com a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) [4].


Para entender essa situação, considere-se o RPPS municipal da capital do Paraná, que não se apresenta como uma exceção. Em 31/12/2022, ele apresentava as seguintes condições:

  • Alíquotas contributivas: servidores (14%) e município (28%);

  • 26 mil servidores ativos com remuneração média mensal de R$ 5,7 mil, gerando uma folha de pagamento de R$ 147 milhões;

  • 20 mil aposentados e pensionistas com proventos médios de R$ 6,5 mil, somando R$ 128 milhões em benefícios mensais;

  • Contribuições mensais de R$ 61,74 milhões (42% da folha de ativos), menos da metade do necessário para cobrir os benefícios.


Como para os demais RPPS, o desequilíbrio financeiro do regime próprio de Curitiba resulta, sobretudo, do baixo número de servidores ativos em relação aos inativos e da disparidade entre as remunerações médias. O déficit financeiro em 2022 teria sido evitado, elevando para 53,5 mil o número de servidores ativos ou dobrando a remuneração mensal média dos 26 mil servidores em atividade.


Além disso, apesar de operar há anos sob o regime de capitalização coletiva, o RPPS de Curitiba apresentava, ao final de 2022, um déficit atuarial de R$ 17 bilhões, tendo um passivo atuarial de R$ 19 bilhões contra um patrimônio de cobertura de R$ 1,7 bilhão.


Em um RPPS até então operado em repartição simples, a implantação do regime de capitalização significa que, ao longo de 35 anos, equivalente a uma geração de servidores, é necessário financiar simultaneamente duas previdências. Além de ter de pagar os já aposentados (a ‘geração passada’ para quem não houve pré-financiamento), o regime próprio deve também custear antecipadamente a previdência dos servidores em atividade (a ‘geração atual’), para que esses cheguem à data da aposentadoria contando com uma reserva financeira capaz de cobrir todas as prestações futuras. A difícil transição para a previdência capitalizada pode ser resumida pelo jargão “pague duas (previdências) e leve uma”.


Para obter o equilíbrio de um RPPS atuarialmente deficitário, a medida padrão adotada por estados e municípios é a implantação de “planos de amortização”, ou seja, de programas dispostos na legislação local, que estabelecem o pagamento parcelado e multianual da dívida do ente federativo com o RPPS.


Normas federais fixam o prazo máximo admitido para os planos de amortização do deficit atuarial do RPPS, em geral de 35 anos [5]. Entretanto, frequentemente o cumprimento dos planos de amortização tem sido inviável por parte dos entes federativos subnacionais, provocando prorrogações ou postergações, que adiam a transição para o regime de capitalização por parte dos RPPS.


A Emenda Constitucional nº 103/2019, conhecida como a reforma da previdência do governo Bolsonaro, entre outras disposições, modificou o artigo 195 da Constituição, estabelecendo um limite máximo de 60 meses para o parcelamento de novos débitos previdenciários. Essa medida buscou acelerar o processo de equacionamento do déficit atuarial dos regimes próprios.

No entanto, sensível às pressões dos municípios, o Congresso vem flexibilizando esse limite de 60 meses. Atualmente, tramita em Brasília a Proposta de Emenda à Constituição nº 66/2023 (PEC 66), que permite o fracionamento dos pagamentos da dívida municipal para com seu RPPS, inclusive relativamente a velhos débitos, em até 300 parcelas ou no limite de 1% da média da receita corrente líquida anual do município. Já aprovada no Senado, a proposta encontra-se em análise na Câmara dos Deputados.


A PEC 66 responde a uma dificuldade real dos entes federativos, mas não enfrenta a raiz dela: a generalizada inexequibilidade do equilíbrio atuarial dos RPPS municipais. A medida limita-se a postergar a solução do problema, reproduzindo as práticas protelatórias que têm caracterizado as leis municipais nos últimos anos.


Em suas articulações junto ao Congresso, a CNM defende também que a PEC 66 obrigue os RPPS municipais a adotarem as mesmas regras de benefícios aplicáveis aos servidores civis vinculados ao RPPS da União. De novo, tal alteração dos direitos dos segurados não soluciona o déficit atuarial desses RPPS, que geralmente sofre uma redução da ordem de 10% a 15%. Isso evidencia que as regras de benefícios não constituem a causa vital do desequilíbrio dos RPPS.

O elemento central das dificuldades dos RPPS subnacionais permanece sendo a viabilidade da exigência do equilíbrio atuarial, uma questão que, no âmbito legislativo, se transformou em uma espécie de tabu, raramente contestada ou debatida de forma aprofundada.


Para aqueles que consideram escandaloso o questionamento da exigência de equilíbrio atuarial dos previdência social pública, é importante destacar a disparidade no tratamento dessa exigência entre os sistemas subnacionais e os nacionais. Na prática, hoje, apenas os RPPS estaduais e municipais devem implementar medidas efetivas para zerar o déficit atuarial. De fato, a União não tem planos de amortização dos déficits atuariais do RPPS de seus servidores civis, que alcançou R$ 1,5 trilhão em 2023, e do RGPS, cujo déficit atingiu R$ 11,8 trilhões.


Conclusão

Além da escassa clareza da Constituição acerca da obrigatoriedade de os RPPS adotarem o regime financeiro de capitalização, há também os expressivos déficits atuariais dos Regimes Próprios, decorrentes de falta de capacidade financeira dos entes federativos instituidores.

Diante desse quadro, cabe rediscutir o modelo constitucional de sustentabilidade a médio e longo prazo dos RPPS de estados e municípios. Em particular, é oportuno considerar a substituição da exigência de equilíbrio atuarial — que requer a implantação bem-sucedida do regime financeiro de capitalização — por critérios mais factíveis e alinhados à realidade financeira dos entes federativos.


Uma alternativa a ser considerada seria a expressa autorização para que os RPPS operem em regime orçamentário, mas complementada pela obrigatoriedade de instituir um fundo de aprovisionamento destinado à garantia os benefícios previdenciários futuros, em adição à responsabilidade do tesouro do ente federativo. Para assegurar efetivamente a sustentabilidade do RPPS no médio e longo prazo, esse fundo deveria contar com uma meta definida de saldo financeiro a ser alcançado dentro de um prazo determinado.

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[1] O regime financeiro é o mecanismo que indica como as fontes de receita (no caso analisado, principalmente as contribuições) financiam as obrigações (no caso, sobretudo os benefícios).

[2] Esse regime é caracterizado pelo pré-financiamento dos benefícios, ou seja, pela formação de reservas financeiras, obtidas por meio de contribuições e de sua aplicação financeira. Até a data da concessão do benefício, essas reservas devem ser suficientes para assegurar o pagamento de todas as prestações futuras devidas. Na previdência social pública brasileira, a adoção do regime financeiro de capitalização não significa a perda do caráter solidário: os benefícios são financiados por um único fundo financeiro mutualista e são calculados com base em disposições legais, e não com base nos saldos de contas individuais, que, nesse contexto, não existem.

[3] O regime financeiro de repartição simples é aquele em que, a cada período, as contribuições arrecadadas visam custear integralmente os benefícios concedidos. Como as contribuições incidem principalmente sobre as remunerações dos segurados em atividade (‘geração atual’) e pagam os proventos de aposentados e pensionistas (‘geração passada’), se diz que esse regime financeiro implica um “pacto de gerações”.

[4] Ver a matéria “Especialistas da CNM alertam sobre situação previdenciária dos Municípios” disponível em https://cnm.org.br/comunicacao/noticias/especialistas-da-cnm-alertam-sobre-situacao-previdenciaria-dos-municipios. Acesso em 15/11/2024.

[5] A Portaria MPS nº 403/2008 fixou o prazo máximo de amortização do déficit atuarial em 35 anos. Hoje, a matéria é regulada pela Portaria MPT nº 1.467/2022 que, embora tenha acrescido outras opções de cálculo desse prazo, mantém os 35 anos como principal referência temporal.



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Republicação da Matéria de:

Luciano Fazio | matemático pela Università degli Studi de Milão e pós-graduado em Previdência Social e Gestão de Fundos de Pensão pela FGV. Trabalha com consultoria e formação nas áreas de economia e previdência e é consultor externo do Dieese para assuntos previdenciários. Autor dos livros "O que é Previdência Social", Loyola, 2016, e "O que é Previdência do Servidor Público", Loyola 2020.



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