Do pregão ao Sicx: a crônica de uma morte anunciada nas licitações públicas
- Secretaria Executiva
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No imaginário popular, parece evidente que licitação pública é sinônimo de ineficiência, sobrepreço e mesmo fraudes em grande escala. Curiosamente, no entanto, vê-se também um ceticismo generalizado no que tange às contratações diretas, que, mesmo em situações autorizadas pela legislação, despertam as mais controversas manchetes jornalísticas (“prefeitura contrata, sem licitação, show do artista…”). Em suma: a crença popular – e de grande parte da mídia, que se não crê, corrobora com a premissa para ganhar leitores e assinantes – é de que com licitação tem fraude, sempre um furto ao erário disfarçado; mas sem licitação, o crime é incontroverso, flagrante, direto, seus responsáveis sequer tentaram disfarçar o ilícito por meio de um procedimento licitatório.

O fato é que, se por um lado o senso comum falha ao presumir ilegalidades sempre, também não deixa de estar certo quanto às ineficiências do sistema licitatório que, não raras vezes, traz consigo uma burocracia disfuncional, prazos longos demais para o atendimento da necessidade administrativa e ainda custos transacionais a serem acrescidos às propostas dos licitantes, resultando em contratos firmados por valores que não correspondem à realidade de mercado. A conta burocracia + prazos + custos transacionais tem gerado como resultado, com poucas exceções, a ineficiência. O fato é notório, já não demandando mais o gasto de muitas linhas para demonstrá-lo.
A administração pública e a doutrina, no entanto, têm buscado soluções para contornar os problemas inerentes às licitações públicas. Nesse cenário, muitos são os “profetas” que anunciam a iminente “morte” do pregão – modalidade licitatória mais utilizada no país, obrigatória para a aquisição de bens de serviços considerados comuns (artigo 6º, XLI da Lei nº 14.133/2021). A ideia, muito alinhada às crenças populares sobre certames públicos, é que a licitação deve se restringir aos objetos de maior vulto econômico ou complexidade técnica, como as obras e os serviços de engenharia – para os quais se aplica geralmente a modalidade licitatória concorrência, que permite a adoção de critérios de julgamento mais sofisticados, como técnica e preço; melhor técnica ou maior retorno econômico (artigo 6º, XXXVIII da Lei nº 14.133/2021).
Com a recente publicação da Lei nº 15.266, de 21 de novembro de 2025 [1], parte da doutrina nacional volta a alardear a superação iminente do pregão nas contratações públicas. Como ocorre no clássico Crônica de Uma Morte Anunciada, do gênio colombiano Gabriel García Márquez, parece que todos já estão muito convictos do que está para acontecer, mal sabe a pobre vítima que goza de suas últimas horas de vida.
Com a referida norma, a Lei nº 14.133/2021 sofre alterações em seus artigos 79; 87; 174 e 175 para a inclusão de uma nova modalidade de credenciamento, o “comércio eletrônico”, para o qual já deixa estabelecida a criação do Sistema de Compras Expressas (Sicx), que deve ofertar bens e serviços comuns padronizados para os entes públicos, incluindo também as empresas estatais, que poderão se valer do sistema.
A iniciativa se alinha aos reclames doutrinários amplamente divulgados recentemente sobre a necessidade de permitir a criação de um e-marketplace para as compras públicas, que seria operacionalizado através do credenciamento para a contratação em mercados fluídos, previsto no artigo 79, III da Lei de Licitações e Contratos Administrativos [2]. Todavia, com a Lei nº 15.266/2025, o legislador foi além: criou uma modalidade de credenciamento específica para essa forma de contratação e um novo sistema eletrônico para a operacionalização das contratações.
Com o Sicx, o que veremos é a formação de um grande “supermercado eletrônico” para as contratações públicas, com fornecedores previamente cadastrados e habilitados (melhor dizendo, credenciados) para participar de rápidas disputas por contratos tão logo acionados na plataforma. Ao invés de se aguardar oito ou dez dias úteis para o recebimento de propostas e realização de uma sessão pública, como acontece atualmente nos pregões regidos pela Lei nº 14.133/2021, a Administração poderá efetivar suas compras de forma muito mais célere, em poucas horas até, a depender de como se dará a regulamentação da nova modalidade pelo Poder Executivo federal.
A iniciativa, no entanto, não é a única empreendida após a edição da atual Lei de Licitações e Contratos Administrativos para tentar evitar o uso do pregão e agilizar as contratações públicas para aquisição de bens e contratação de serviços comuns.
Com a Instrução Normativa Seges/MGI nº 52, de 10 de fevereiro de 2025, o Governo Federal criou o portal Contrata+Brasil, “destinado a ofertar bens e serviços para contratações pela administração pública Federal direta, autárquica e fundacional, em formato de comércio eletrônico” (artigo 1º, caput, da IN) [3]. Tal sistema, assim como o Sicx, também funciona como e-marketplace para as contratações públicas e foi disponibilizado para estados; municípios; empresas estatais; serviços sociais autônomos e entidades privadas sem fins lucrativos que recebem recursos públicos por meio de convênio ou instrumentos congêneres, conforme o parágrafo único do seu artigo 1º evidencia.
Mais desejo que análise técnica
Passados mais de nove meses da publicação da IN Seges/MGI nº 52/2025, no entanto, o sistema Contrata+ Brasil parece não ter tido o efeito esperado pelos “profetas” que já o anunciavam como o substituo derradeiro do pregão, que continua a ser a forma de contratação mais utilizada em todo o país. A plataforma em questão ainda é limitada aos serviços de manutenção e pequenos reparos prestados por microempreendedores individuais (MEI), mas já conta com mil órgãos públicos cadastrados (396 federais, 64 estaduais e 540 municipais) e pretende promover a entrada gradual de novas linhas de fornecimento e outros perfis de fornecedores [4]. Com o Sicx, deve acontecer o mesmo fenômeno: à medida em que a regulamentação federal e o desenvolvimento da plataforma avançarem, devem surgir novas linhas de fornecimento e perfis de fornecedores.
O certo é que, sob variadas perspectivas de análise, fica claro que qualquer profecia sobre a superação completa da modalidade pregão é mais desejo que análise técnica. É muito difícil mudar práticas já consolidas – não só pela resistência natural às mudanças, inerente ao ser humano, mas também pela necessidade de empreender novos esforços para absorver as novidades e colocá-las em prática com segurança. Não negamos que é legítima a resistência ao pregão para diversas situações e que alternativas a ele devem existir, mas é muito prematuro começar a escavar a sepultura para uma determinada modalidade de contratação quando sequer existe condenação à morte já transitada em julgado para ela. O processo ainda está em curso e há muito o que provar por parte do Sicx e da plataforma Contrata+ Brasil.
A morte do pregão pode até ser anunciada por alguns com bastante convicção e sinceridade, mas não é tão certa quanto parece. Começam a surgir diversas alternativas ao procedimento licitatório clássico, mas é preciso aguardar para ver como serão recebidas pelos órgãos e entes públicos contratantes e pelo controle externo – afinal, por mais que o Sicx permita um certo nível de competição entre os fornecedores para a contratação com o poder público, ainda é uma modalidade de inexigibilidade de licitação por meio de credenciamento, não de licitação; o que pode suscitar dúvidas quanto à legalidade de sua ampla adoção, tendo em vista que o artigo 37, XXI da Constituição estabelece que, em regra, as contratações públicas devem ser precedidas de certame licitatório [5].
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Fonte: conjur.com.br
Artigo de: Marcos André de Almeida Malheiros Filho
Davi da Cunha Rios
Advogado, parecerista e pesquisador na área de licitações e contratos administrativos, bacharel em Direito pelo Centro Universitário Nobre (Unifan) e pós-graduando em Direito Administrativo pela Unifat.
[1] BRASIL. Lei nº 15.266, de 21 de novembro de 2025. Altera a Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos), para prever o uso do Sistema de Compras Expressas (Sicx) na contratação de bens e serviços comuns padronizados. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 nov. 2025. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2025/Lei/L15266.htm. Acesso em 24 nov. 2025
[2] Nóbrega, Marcos; Torres, Ronny Charles Lopes de. A Nova Lei de Licitações, Credenciamento e e-Marketplace: O Turning Point da Inovação nas Compras Públicas. Disponível em: https://ronnycharles.com.br/a-nova-lei-de-licitacoes-credenciamento-e-e-marketplace-o-turning-point-da-inovacao-nas-compras-publicas/. Acesso em 24 nov. 2025
[3] BRASIL. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI). Instrução Normativa Seges/MGI nº 52, de 10 de fevereiro de 2025. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 fev. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/contratamaisbrasil/pt-br/central-de-conteudo/editais-e-regulamentacao/instrucoes-normativas/instrucao-normativa-seges-mgi-no-52-de-10-de-fevereiro-de-2025. Acesso em 24 nov. 2025
[4] Disponível em: https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/noticias/2025/outubro/contrata-brasil-alcanca-mil-orgaos-cadastrados-e-avanca-com-forma-mais-simples-de-fazer-pequenas-contratacoes-no-setor-publico. Acesso em 24 nov. 2025
[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 24 nov. 2025







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