Por que se preocupar com a matriz de riscos nas contratações públicas?
- Secretaria Executiva
- 21 de jul.
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A atual Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/21) positivou relevantes ferramentas, entre as quais se destaca a matriz de alocação de riscos, que já era prevista para contratações sujeitas a leis específicas[1], mas agora recebe definição e contornos legais expressos na lei geral da atividade contratual do Estado[2].
A matriz de riscos é um importante componente da estrutura contratual, na medida em que tem a função específica de alocar entre as partes contratantes os possíveis riscos supervenientes à assinatura do contrato e que podem impactar seu equilíbrio econômico-financeiro, permitindo a prévia precificação desses riscos.
Formalmente, é um documento guia que integra o contrato, seja na forma de cláusulas contratuais constantes de sua minuta ou no formato de anexo próprio (ou ainda um modelo híbrido que combina as duas formas).
Cabe lembrar que riscos e obrigações são institutos diversos e com funções distintas, razão pela qual não devem ser confundidos na modelagem contratual[3]. A lei geral reforçou essa compreensão, ao prever que a alocação eficiente de riscos deve considerar as obrigações e encargos já atribuídos às partes no contrato[4].

O tema da alocação de riscos nas contratações públicas merece a devida preocupação de quem atua na modelagem dos contratos administrativos, pois envolve a difícil tarefa de distribuir, de maneira racional, as responsabilidades por eventos que podem surgir no curso da execução contratual, interferindo na equação econômico-financeira do contrato e no cumprimento do seu escopo.
Por isso mesmo, restou expresso na lei geral que o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em relação a eventos supervenientes é definido pela matriz de riscos, que deve ser observada na solução de eventuais pleitos das partes. Assim, uma vez atendidas as condições do contrato e da matriz de alocação de riscos, será considerado mantido o equilíbrio econômico-financeiro, renunciando as partes aos pedidos de reequilíbrio relacionados aos riscos assumidos[5].
Daí a determinação na Lei 14.133/21 para que se quantifique a alocação de riscos[6], justamente porque todo risco previsto e alocado ao contratado importa em um custo para segurá-lo ou remunerá-lo. Isto é, quanto maior os riscos atribuídos ao contratado, maior será o valor de sua proposta e remuneração.
Mas aqui o óbvio precisa ser dito: a matriz de riscos não serve simplesmente para eximir as partes de responsabilidades decorrentes da concretização de riscos que não lhe foram alocados.
Atenta a esse ponto, a Lei 14.133/21 exige que a matriz contemple mecanismos de prevenção e mitigação dos riscos alocados[7], para que, caso se materializem, não prejudiquem o bom andamento da execução contratual. O objetivo deve ser sempre o êxito da execução do contrato com a entrega efetiva de bem ou serviço que satisfaça uma necessidade pública.
De fato, nem toda contratação pública envolve riscos significativos que exijam alocação e mitigação, motivo pelo qual a lei geral de contratações públicas determina apenas que, a princípio, os riscos contratuais sejam sopesados na fase preparatória da licitação[8].
Partindo dessa premissa, a Lei 14.133/21 prevê que a elaboração de matriz de riscos nas contratações públicas, como regra, é um ato discricionário do gestor público[9], ressalvados alguns casos em que referida lei geral obriga a alocação de riscos entre as partes[10], além de outros contratos administrativos previstos em leis específicas que impõe a incorporação da matriz[11].
De qualquer modo, a ausência de imposição legal explícita não desobriga o gestor público do dever de avaliar a necessidade de alocação e mitigação de riscos na atividade contratual do Estado. As concessões comuns, reguladas pela Lei 8.987/95 (Lei de Concessões), talvez sejam o principal exemplo de contratos administrativos que adotam matriz de riscos, à míngua de imposição legal nesse sentido.
Seja nas hipóteses de elaboração facultativa ou de imposição legal, a matriz deve ser formalizada com a alocação eficiente de riscos, como, inclusive, determina a lei geral[12]. Mas como fazer essa alocação eficiente em contratos administrativos, a fim de melhorar a governança na gestão e execução contratual, considerando-se as peculiaridades de cada objeto?
Inicialmente, frise-se que não existe uma matriz de riscos universal e que seja adequada a todo tipo de contrato administrativo, pois cada setor e cada objeto possuem suas peculiaridades. Mesmo nas contratações com escopos aparentemente parecidos (por exemplo, concessão de uso de parque), é necessário o aperfeiçoamento constante da alocação de riscos a partir das experiências adquiridas ao longo da execução de contratos anteriores.
Decorre das melhores práticas internacionais a concepção de que o risco deve ser alocado a quem melhor o gerencia, entendimento que foi incorporado na lei geral[13]. Nesse ponto, não existem critérios absolutos, admitindo-se a alocação àquele que possui mais informações, maior poder de decisão e/ou real capacidade de arcar, suportar e mitigar o risco. O que importa é que os critérios eleitos sejam racionais, transparentes e justificados.
Contudo, apesar das diretrizes traçadas pela Lei 14.133/21, nota-se que a alocação de riscos é um componente negligenciado em muitas contratações públicas, até mesmo em contratos administrativos mais complexos e de longo prazo, como são as concessões de serviços públicos e PPPs.
Ainda é utilizada a fórmula genérica segundo a qual alguns riscos taxativos são alocados ao contratante, enquanto um rol extenso e meramente exemplificativo é atribuído ao contratado, o que efetivamente não atende o ideal de matriz de riscos eficiente.
A despeito da exigência legal de uma alocação de riscos que estabeleça mecanismos de prevenção e mitigação de sinistros[14], não é incomum encontrar contratos administrativos com alto investimento privado e de longa duração – por exemplo, concessões comuns –, que simplesmente distribuem riscos entre as partes sem se preocupar com técnicas capazes de reduzir a probabilidade de ocorrência dos eventos indesejados.
Com efeito, persiste a dificuldade em elaborar uma matriz de riscos eficiente no âmbito da Administração Pública, seja por negligência sobre a matéria, seja pela falta de expertise dos servidores públicos na área atuarial, na qual são avaliados e precificados riscos.
Ocorre que uma matriz não embasada em critérios racionais e metodológicos claros, que permitam a distribuição estratégica e segura de riscos, desvirtua finalidade da ferramenta de proporcionar segurança jurídica e previsibilidade às partes durante a fiscalização e gestão contratual, bem como impede que o contratado formule sua proposta de forma consciente.
Não só isso, a alocação ineficiente de riscos pode afastar licitantes sérios e abrir espaço para contratação de licitante aventureiro, que assume riscos sem a devida precificação e sem a capacidade de enfrentá-los, ensejando longas e onerosas discussões sobre a alteração da matriz de riscos e das condições econômico-financeiras da proposta após a assinatura do contrato.
No pior cenário, a alocação ineficiente de riscos pode acarretar a indesejável inexecução do objeto e extinção do contrato pelos mais variados motivos (inadimplemento, caducidade, relicitação, etc.), comprometendo a entrega e a continuidade dos serviços públicos prestados à população.
A estruturação de contratos administrativos é uma tarefa que desafia uma alocação eficiente dos riscos envolvidos, sobretudo em contratos de longo prazo e que envolvem vultuosos investimentos.
Por tudo isso, é preciso reconhecer que a matriz de riscos é um tema central em matéria de boa gestão contratual e merece o devido aprimoramento daqueles que atuam na modelagem das contratações públicas.
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[1] A matriz de alocação de riscos já era prevista expressamente na revogada Lei do RDC (arts. 9º, §5º, da Lei 12.462/2011) e no Estatuto das Empresas Estatais (arts. 42, X, §1º, I, “d”; 69, X; 81, §8º, da Lei 13.303/2016). A Lei de PPPs também já consagrava a alocação de riscos entre os contratantes (art. 4º, VI, 5º, III, da Lei 11.079/2004), embora não trate especificamente da matriz.
[2] Art. 6º, XXVII, da Lei 14.133/21.
[3] Riscos são eventos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis que podem impactar o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, ensejando (ou não) o direito a reequilíbrio a depender do que restou previsto no instrumento contratual. Já obrigações, institutos típicos do direito civil, consistem em prestações de fazer, não fazer ou de dar assumidas pelas partes no contrato e que guiarão o atingimento de seu escopo.
[4] Art. 103, §1º, da Lei 14.133/21.
[5] Art. 103, §§ 4º e 5º, da Lei 14133/21.
[6] Art. 103, §3º, da Lei 14.133/21.
[7] Art. 22, §1º, da Lei 14.133/21.
[8] Art. 18, X, da Lei 14.133/21.
[9] Art. 22, caput, e 103 da Lei 14.133/21.
[10] A Lei 14.133/21 obriga a elaboração de matriz de riscos nas contratações de obras e serviços de grande vulto ou em regimes de contratação integrada ou semi-integrada (art. 22, §3º, da Lei 14.133/21).
[11] É o caso dos contratos administrativos de ppps (administrativas ou patrocinadas), que exigem a repartição objetiva dos riscos entre as partes e a respectiva previsão contratual (art. 4º, VI; 5º, III, da Lei 11.079/2004).
[12] Art. 22, §1º, da Lei 14.133/21.
[13]Art. 103, §1º, da Lei 14.133/21.
[14] Art. 22, §1º, da Lei 14.133/21.
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Fonte: JOTA.INFO
Artigo de: Jean Almeida do Vale
MBA em PPPs e Concessões Sustentáveis pela FGV. Procurador do Estado de São Paulo







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